sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Tocando o Mal - Criando e inserindo Vilões Memoráveis na sua campanha

Durante o final de semana passado eu aproveitei para assistir alguns seriados em DVD, em especial a série Millennium (um programa dos anos 90, meio-irmão de Arquivo X), e ouvindo a faixa de comentários dos realizadores surgiu um assunto interessante.

O produtor da série discutia como alguns vilões do seriado foram concebidos. Para quem não conhece, Millennium é uma série meio-dark em que um grupo de pessoas preocupadas com a virada do Milênio se dedica a estudar fenômenos que podem estar ligados ao fim dos tempos.

Os "caras malvados" de Millennium em geral são assassinos em série, maníacos, gente pirada e fanáticos religiosos. O tipo do antagonista que você espera encontrar em cenários de Horror na forma de cultistas dementes. Eu achei alguns dos comentários especialmente interessantes pelo tratamento que era dado a cada um desses vilões e a maneira como os roteiristas tentavam fazer com que eles fossem o menos estereotipados possível.

Vou copiar aqui algumas das idéias que podem ajudar na criação de vilões realistas e memoráveis.

1 - O Poder é relativo

Na maioria das vezes, espera-se que os heróis enfrentem o vilão em uma batalha épica. Mas será que todo vilão precisa ser um inimigo super poderoso capaz de desafiar os personagens em uma arena onde suas diferenças serão decididas em um combate de vida e morte?

Pense em termos de Super-Heróis: O arqui-nêmesis do Super-Homem, um dos mais conhecidos heróis de todos os tempos, é um sujeito chamado Lex Luthor que não tem poderes sobre-humanos. Ainda assim, Luthor é perigoso, mortal, vingativo e possui recursos para tornar a vida do homem de aço em um inferno. Super-Homem poderia se livrar de Luthor com um espirro ou com uma flexão de seus músculos. Luthor não é um cara com super-poderes, mas não obstante ele é a maior pedra em sua bota.

O que quero dizer é que grandes vilões não precisam ser incrivelmente poderosos para serem ameaçadores ou perigosos. Eles podem compensar essa falta de poder com outros recursos usados para infernizar a vida dos heróis.

Um dos melhores vilões que eu já criei em Call of Cthulhu foi o maquiavélico diletante Arthur Thornhill, um milionário que em um determinado momento havia se tornado um cultista de Nyarlathotep. Ele não tinha nenhum atributo fora de série ou habilidades especiais, tudo o que ele possuía era sua genialidade e a capacidade de antecipar as ações dos investigadores e deixar armadilhas pelo caminho. Ah sim, ele também tinha dinheiro, muito dinheiro...

A inspiração veio de uma mistura de Lex Luthor e Professor Moriarty, o inimigo mortal de Sherlock Holmes. Um dos planos dele dos quais tenho orgulho envolveu deixar os investigadores recuperar um manuscrito antigo de seus comparsas. O que o grupo não sabia que o manuscrito ao invés de conter a magia que eles buscavam ao ser lido invocava um Vampiro Espacial.

O grupo amaldiçoou esse vilão e o perseguiu através da África até um encontro final nas ruínas da cidade perdida de G'Harne. Até hoje os jogadores se recordam de Arthur Thornhill e da ameaça que ele representava.

2 - Um indivíduo comum

Muitas vezes vilões recaem nos inevitáveis estereótipos raciais, comportamentais ou regionais.

Isso pode até funcionar em cenários pulp que se inspiram nas aventuras dos anos 30, onde não raramente o vilão é um camarada estrangeiro, com sotaque carregado e que se veste de preto. Contudo, vilões realmente ardilosos tendem a se fazer passar por pessoas normais que se misturam facilmente na população ou que não parecem ser ameaçadores até o momento em que revelam seus planos.

Norman Bates, o maluco do filme Psicose, parece um sujeito absolutamente normal, até meio chato e bobão. Mas quando vestia as roupas da própria mãe para assassinar as mulheres que se hospedavam em seu motel de beira de estrada, sua verdadeira face de vilão vinha à tona. Ninguém poderia imaginar que aquele carinha pacato era um frio assassino.

Na vida real, assassinos em série que aterrorizam grandes cidades e que são capturados após verdadeiras caçadas humanas, se revelam sujeitos absolutamente normais. Muitos são casados, tem filhos, trabalham e pagam seus impostos. Não é raro que vizinhos se mostrem chocados com a descoberta. Quando entrevistados comentam: "Mas ele parecia um sujeito normal, queito... nunca pensei que poderia fazer isso!"

A regra é que vilões não possuem rótulos ou um rosto que necessariamente os identifica como os monstros que eles realmente são.

3 - O Lobo em pele de Carneiro

Nada pior que o aliado de confiança que se revela um inimigo mortal.

Esse é um recurso válido para campanhas longas, quando um NPC é apresentado como aliado e se junta ao grupo como a resposta para uma determinada limitação da equipe. Por exemplo, o guia que é contratado para conduzir o grupo através da densa floresta amazônica rumo à cidade perdida de Eldorado ou o pesquisador especialista em idiomas sumérios que planeja apenas roubar o documento que ele deveria ajudar o grupo a traduzir. O traidor pode ser um agente que na verdade trabalha para a célula terrorista ou um espião infiltrado para descobrir os planos secretos.

Em comum o fato desses indivíduos se apresentarem inicialmente como aliados mas no fim das contas se revelarem como traidores cujo objetivo único é sabotar a missão dos personagens centrais. Atrasá-los, detê-los e em última estância eliminá-los.

Em geral o "lobo entre os cordeiros" não é o vilão principal de um cenário. Na maioria das vezes ele trabalha para algum vilão mais importante que o contrata para dificultar as coisas para os jogadores. O lobo em pele de cordeiro é um verdadeiro ator, ele se faz passar por alguém que está do lado do grupo, que se importa com eles e que está comprometido com seus ideais. Para acentuar seu comprometimento com o grupo ele até age lado a lado com os colegas, faz o seu trabalho, tenta ser solidário nos piores momentos, tudo isso enquanto lança as sementes da discórdia e do caos.

Um dos melhores lobos em pele de cordeiro que já usei, foi um personagem na mega-campanha Beyond the Mountains of Madness que se passa na Antartida. O sujeito era um veterano da expedição anterior, conhecia os segredos da cidade perdida e os riscos de explorar o lugar. Deliberadamente ele fez de tudo para atrasar e sabotar a expedição, desde avariar máquinas e equipamentos, até matar os cães que puxariam os trenós e envenenar a comida dos personagens. Quando o grupo começou a desconfiar dele, o personagem encenou uma tentativa de assassinato e chegou a se cortar com uma faca para reafirmar que ele estava do lado do grupo e que o traidor seria outra pessoa. Funcionou perfeitamente.

4 - A personalidade faz o vilão

Os verdadeiros vilões se destacam por um algo mais. Um fator que os coloca acima dos simples bandidos e inimigos que o grupo encontra e despacha no decorrer das aventuras. Um verdadeiro vilão que se preze tem algo que o torna tão memorável que nenhum outro inimigo chega aos seus pés. É o tipo do indivíduo cuja mera sugestão de seu nome faz os heróis tremerem nas bases.

Todo grade herói possui um desses vilões. Pegue o Batman, por exemplo. Nós vemos o Cavaleiro das Trevas enfrentar o Charada, o Duas Caras e o Pinguim numa boa, são grandes inimigos, mas quando ele tem de enfrentar o Coringa a coisa muda de figura. O grau de ameaça de certos vilões é tamanho que o herói sabe que não pode brincar nesse caso. E perceba que não tem nada a ver com o nível do poder.

Certos vilões estão em outro patamar eles possuem um "algo mais" que concede profundidade e camadas da mais pura malevolência. Esse fator pode variar muito de acordo com a personalidade do vilão. O fator pode ser a maldade (Darth Vader), a nobreza inquietante (Magneto), a crueldade (Drácula), o ímpeto implacável (Exterminador do Futuro) ou a corrupção moral (Barão Harkonnen). Todos esses vilões possuem um algo mais que os destaca e faz com que os heróis os reconheçam antes de tudo pela sua característica mais forte.

O clássico romance "Os Miseráveis" de Victor Hugo, conta a estória de um prisioneiro que tenta a todo custo reconstruir a sua vida e se livrar da identidade anterior. Seus planos são atrapalhados por um inspetor de polícia obscecado por capturar o único homem que escapou de suas garras. Fica claro que o inspetor de polícia é um vilão diferenciado quando ele prossegue na sua caçada transpondo obstáculos e indo até as últimas consequências.

Um dos vilões que eu gostei bastante de interpretar em Call of Cthulhu foi Malcolm Quarrie na campanha Tatters of the King. Era um vilão cuja qualidade principal transparecia na frieza e na inteligência metódica, ele não perdia a compostura nem mesmo quando o grupo encontrava com ele no surreal Plateau de Leng em meio a uma tribo de degenerados Tcho-Tchos que planejavam devorar os investigadores em um ritual canibal. Quarrie, um acadêmico de Oxford aparecia apenas no final da campanha, mas seu nome era comentado desde o início. Enquanto explicava seus planos macabros para os investigadores - devidamente capturados - ele parecia bem à votade fumando seu cachimbo, como se estivesseem uma reunião em seu escritório e não em uma caverna distante da civilização.

5 - Alma Negra

O vilão é a imagem negativa dos heróis, a metade negra por assim dizer.

Dentre os vilões que realmente se destacam estão aqueles que representam o que há de mais horrível, abjeto e imoral na natureza humana.

O que marca um vilão são as suas ações e em um cenário de RPG não faltam oportunidades para que um vilão possa se sobressair.

Talvez o pior vilão que eu tenha criado para Call of Cthulhu tenha sido um oficial nazista da Karotechia em Delta Green. O Capitão Shutzstaffel (SS) Karl Hans Dietrich era o supra-sumo da maldade. Não bastasse ser um nazista ele também era um cultista dos Antigos, disposto a fazer todo tipo de experimento com prisioneiros de guerra, assassinar inocentes e torturar pessoas impiedosamente para obter informações. Era o tipo do vilão que marcava presença pelas ações e que não passava um episódio da campanha sem fazer algo medonho.

6 - O Vilão que se acha um herói

Uma reviravolta interessante é usar vilões que não vêem seus atos ou planos como vilanescos. Tudo é uma questão de perspectiva, de ponto de vista...

Em tempos nebulosos quem pode dizer quem está alinhado com o bem e quem está servindo ao mal? Assim como acontece na vida real, os vilões não precisam ser totalmente maus e nem totalmente bons, há um meio termo perigoso.

Alguns vilões podem achar que sua causa é de alguma forma justa ou que a conclusão de seus planos trará um bem maior, ainda que a realização aos olhos de todos pareça torpe e maligna. O melhor exemplo disso é o vilão de Watchmen, Ozymandias que para salvar bilhóes sacrifica milhões. Por pior que tenha sido seu ato, ele está conicto da retidão de seus atos, ele não se vê como o vilão.

Em cenários Lovecraftianos,o mal é bem delineado. Aqueles que servem ao Mythos em geral são indivíduos malignos. Mas nem sempre precisa ser assim. O poder do Mythos pode confundir as pessoas, fazer com que elas acreditem em promessas vãs. Assim poderia acontecer com um culto que se forma ao redor de um avatar de Nyarlathotep que à primeira vista parece benevolente, mas que na realidade planeja guerras, destruição e o caos. Será que os cultisdtas estariam dispostos a sacrificar, matar e punir os que não seguissem aquilo que eles vêem como "causa justa?"

EM RESUMO:

Então é desejável dar aos vilões uma personaliadde profunda, mas isso é o bastante para criar um vilão memorável? Você pode criar verdadeiros deuses que são os vilões de sua campanha, ou pode fazer com que um sujeito aparentemente sem graça seja o inimigo mortal do grupo, mas nada garante que qualquer um deles será um grande vilão.

Algumas coisas ajudam a criar a persona do vilão e saber que se está no caminho certo.

Algumas dicas:

Pode estar certo - em algum momento de sua campanha, você irá criar um personagem para opor os personagens principais e (seja lá por qual motivo) os jogadores vão reagir de forma positiva a respeito dele. Talvez seja algo que ele diz, algo que ele faz, algo que o destaca. Nesse ponto, o personagem têm potencial para ser um grande vilão.

Preste atenção nos Sinais

Fique atento para o momento em que os jogadores expressam sua reação positiva. Um bom indício é quando os jogadores falam à respeito do vilão fora do jogo ou nas pausas da sessão, especulando sobre seus planos e sua atitude. Outra pista é observar a intensidade da interação entre os jogadores (interpretando os protagonistas) e o Vilão (que você como mestre conduz). Quando o vilão estiver presente na mesa as conversas paralelas serão menos frequentes e os jogadores irão se manter dentro do personagem com maior seriedade. Este sinal é ótimo para o roleplay e indica que o vilão ganhou a atenção dos jogadores, seria uma boa manter esse personagem vivo por mais algum tempo e cultivar sua personalidade.

Identifique o que é Legal

Esta parte é crucial. Encontre no personagem aquilo que causou a reação inicial. Pode ser uma única ação, a maneira como o personagem se dirigiu ao grupo, algo que ele fez, um tom, um cacoete, um conceito ou uma dúzia de elementos diferentes. Tente salientar essa característica (sem ser repetitivo) e explore a reação inicial para que o grupo associe o personagem com aquilo que é interessante sobre ele. Se o grupo adora o vilão porque ele murmura uma piada sempre que mata um inimigo, invista nisso e pense em novas piadas sarcáticas de acordo com a execução que ele promove. Se funciona uma vez, pode estar certo que vai funcionar novamente e o grupo vai adorar.

Fazendo o vilão crescer

Um vilão por melhor que seja não está livre de estagnar. Embora o personagem possa ser a coisa mais legal de sua narrativa, nenhum personagem resiste a uma série de estórias sem mostrar algo novo. Um vilão que é sempre a mesma coisa, semana após semana de jogo começa a perder a graça. Tente aprimorar o vilão e acrescentar camadas mais profundas à sua personalidade. Uma biografia, uma razão dele ser do jeito que é, um motivo, objetivos escusos e tudo aquilo que faz dele o antagonista em sua estória.

O Vilão recorrente

Por vezes é difícil se despedir do vilão que você criou. Bons vilões por vezes são tão carismáticos que até o mestre sente se despedir dele. Às vezes não é preciso fazer isso. No mundo do RPG nem tudo, nem a morte, é permanente (e em estranhas eras, mesmo a morte pode morrer, certo?) Desse modo, fica mais fácil reprisar a aparição daquele vilão memorável. Mas uma advertência: cuidado para não exagerar na dose. O vilão é como uma "participação especial" em sua aventura, ele não deve aparecer toda sessão. Imagine se Batman fosse atormentado pelo Coringa em todas as edições sem deixar espaço para outros personagens. O vilão realmente respeitado e temido pode aparecer só de vez em quando e a mera sugestão de que ele está presente será o suficiente para causar excitação entre os jogadores.

Bom, é isso. O artigo acabou ficando maior do que eu pensava, mas vilões sáo um assunto fascinante e dada sua importância merece um certo grau de dedicação.

Um comentário:

  1. Não conheço essa série Millennium, mas não sei porque me lembrou de um rpg da Pelgrane Press, Esoterrorists. Estranho.

    Enfim, parabenizações pelo artigo. Excelente.

    ResponderExcluir