domingo, 16 de setembro de 2012

Memórias de uma grande Campanha - Idas e vindas da minha caixa de "Horror on the Orient Express"

O anúncio de que a campanha Horror on the Orient Express será relançada pela Chaosium em uma edição especial caprichada é uma grande notícia.

Para quem não teve a oportunidade de jogar essa campanha, será uma chance de ouro para conhecer um dos grandes livros de RPG lançados nos anos 90. Um produto que marcou época e que ainda hoje é lembrado com carinho por saudosistas que tiveram a chance de "viajar à bordo do Orient Express na vã esperança de frustrar os planos dos cultistas do Mythos".

É óbvio que estou incluído entre esses saudosistas incorrigíveis. Joguei essa campanha entre 1993-1994 com meu antigo grupo de RPG.

Foi uma das melhores experiências em mesa de jogo que tive em minha - posso dizer - longa vivência como entusiasta da nobre arte de contar estórias e rolar dados.

Lembro da animação do grupo quando conseguimos comprar a campanha que estava à venda na lendária loja Gibiteria e Bárbaras Magias, no centro do Rio de Janeiro. Foi preciso um esforço de todos envolvidos para adquirir a caixa, já que o preço de capa era de exorbitantes US$ 49,99, um dos livros mais caros daquela época. Para se ter uma idéia, nesses tempos a gente comprava uma caixa da TSR (antiga editora do AD&D) por US$ 25,00 mais ou menos. E eram os famosos Boxed Set como o de Dark Sun ou Dragonlance, que vinham recheados de posters/mapas e vários booklets.

Quando vi a caixa pela primeira vez através da vitrine, foi um daqueles típicos casos de amor à primeira vista. Nosso grupo jogava Call of Cthulhu há menos de um ano, mas era muito difícil conseguir livros da Chaosium, minha coleção se resumia a dois suplementos e uma cópia xerox do livro Básico.

Corri para telefonar para meus colegas (celular? hahaha, orelhão mesmo!) e começamos a reunir fundos para comprar o livro, antes que alguém fosse mais rápido. Em 93 eu estava no colégio, portanto não era tão fácil comprar livros de RPG dependendo de mesada. Além disso, quero lembrar a todos que compras pela internet não eram garantidas e lojas on-line, como o Amazon, não existiam. [Hora dessas, vou contar sobre a nossa primeira compra na Chaosium, feita por telefone (!!!!)]

Enfim, quando um jogo aparecia você tinha de ser rápido no gatilho, do contrário perdia a chance. Por sinal, pensando em retrospectiva agora, essa foi a única vez que vi um exemplar de HotOE à venda.

Depois de muita negociação finalmente conseguimos resolver a questão financeira e rumamos para a loja, mas quando chegamos descobrimos que a caixa não estava mais na vitrine. O horror, o horror...

Falando com a Esther (quem lembra da antiga dona da Gibiteria?) descobrimos que a caixa estava reservada para outra pessoa. O sujeito tinha ficado de vir buscar à qualquer momento. Foi um verdadeiro balde de água gelada...


Mas aí, felizmente, veio a reviravolta.

Dois amigos que estavam no grupo que ia rachar o livro, tinham ajudado a Esther durante a realização da primeira edição da RPGRio, um dos primeiros eventos de RPG na cidade. Eles tinham trabalhado na organização, e tinham ralado praticamente de graça, apenas pelo prazer de participar do evento. Com um pouco de jogo de cintura (e talvez um rolamento crítico de Persuade ou Fast Talk) eles conseguiram levar uma conversa com ela e a convenceram a vender a caixa apesar dela estar reservada.

Sucesso!!!! Horror on the Orient Express voltou para casa conosco.

Quando abrimos a caixa nos deparamos com um material diferente de tudo que já tínhamos visto. Na lateral da caixa estava escrito: "Uma campanha luxuosa através de um continente", mas a coisa era mais bonita do que podíamos imaginar. Hoje em dia, a caixa original de HotOE talvez não seja mais tão impressionante, afinal temos livros totalmente coloridos, em impressão de alta qualidade e acabamento de primeira. Mas em 1993 aquilo era incrível, simplesmente sensacional: Mapas, handouts, passaportes, posters coloridos, props, adesivos, livros em cadernos separados. Tudo aquilo era novidade.

Quem compra livros de RPG conhece aquela sensação, um misto de ansiedade e curiosidade, ao folhear um livro recém comprado, cheirando a novo. Isso não chega aos pés da sensação de explorar o conteúdo de uma caixa recém aberta. Os colegas veteranos devem saber do que estou falando...

O keeper que ia narrar a campanha era nosso mestre habitual de Call of Cthulhu, um dos melhores mestres com quem já joguei. Ele leu o resumo da campanha e os primeiros dois cenários ("Dancers in the Evenning Fog" e "The Doom Train") em uma noite. No dia seguinte, já estávamos prontos para rolar nossos personagens e dar início a nossa investigação sobrenatural.

Cada jogador criou três personagens para a campanha, seguindo as dicas de que Horror on the Orient Express era literalmente um "moedor de carne" de personagens. Construí meus três personagens, o Dr. Wayne Abbercon (pesquisador médico e cientista interessado em reproduzir a fórmula do Elixir Reanimator de Herbert West), o escritor americano Stephen Barker (eu sei, o nome tosco é uma homenagem aos meus dois autores preferidos na época Stephen King e Clive Barker) sendo que ele era um autor de contos de horror e finalmente a diletante Lady Helen Marie Olenska, uma condessa britânica, típica mulher à frente de seu tempo.

Todos os personagens faziam parte de uma sociedade chamada Clube de Hades , uma instituição com sedes em Londres e Arkham que se dedicava a estudar o ocultismo e o paranormal. Usar o Clube de Hades como base para estabelecer as relações entre os personagens foi um achado. Muitos jogadores e mestres em Call of Cthulhu se queixam da dificuldade de estabelecer um vínculo entre os personagens, através desse recurso o grupo estava estabelecido quase que imediatamente.

Jogamos Horror on the Orient Express ao longo de um ano e meio. Foi uma campanha longa e cheia de detalhes, mas recompensadora para todos os que participam dela. Uma verdadeira experiência de role-playing e interação entre jogadores. Eu guardo lembranças muito boas de nossos jogos e de cada sessão.

A sessão final, que marcou o dramático retorno a Londres, aliás foi disputada com os jogadores vestidos à caráter e o mestre trajando smoking. Foi uma das aventuras mais legais das quais participei até hoje, uma pena que eu não tenha mais as fotografias desse jogo memorável.

Terminada a viagem do Orient Express, o saldo da campanha foi de notáveis ONZE personagens mortos. Mais dois irremediavelmente insanos. Cinco personagens sobreviveram a campanha, sendo que a Condessa Olenska escapou viva (com 20 pontos de sanidade, sem um olho e com graves cicatrizes físicas e emocionais). Ainda assim, ela conseguiu se aposentar em sua propriedade em Kensington (onde como gosto de acreditar, vive até hoje).

É engraçado, mas pouco depois do encerramento da campanha, o grupo acabou se separando. HotOE marcou o fim dos nossos jogos. Alguns colegas que participaram da campanha se mudaram, outros haviam deixado de jogar RPG e alguns simplesmente perdi o contato. Por vezes, aqueles que são nossos melhores amigos em um determinado momento, inexplicavelmente acabam sumindo com o passar do tempo... eu mesmo estava cursando a Faculdade e não tinha muito tempo livre.

Por uma enorme coincidência, uns cinco ou seis anos depois, acabei esbarrando por acaso na mãe de um desses colegas com quem joguei HotOE. Ela me deu notícias sobre esse meu amigo, contou que ele havia se mudado e que estava feliz vivendo em outra cidade. Em seguida disse que ele havia deixado para trás vários livros, alguns que inclusive podiam ser meus já que a gente sempre estava emprestando livros uns aos outros.

Respondi que iria ver, hora dessas, mas ela retrucou que estava de mudança e que planejava jogar a maior parte daquela tralha no lixo. Para ser sincero, eu nem imaginava o que ia encontrar, pensei que poderia achar algumas revistas em quadrinhos que havia emprestado "séculos" atrás, mas acabei concordando em dar uma olhada.

Olhando aqui e ali, acabei descobrindo de baixo de uma pilha heterogênea de revistas e livros antigos, a caixa do Orient Express. A mesma caixa que nós tínhamos comprado e que eu supunha estava perdida. Até as fichas que usamos no jogo estavam dentro da caixa. Perguntei se poderia pegar a aquilo de volta, e ela respondeu: "Claro eu já tinha separado isso ontem, para jogar fora hoje. Leve o que quiser".

E foi assim que a caixa de Horror on the Orient Express acabou voltando para as minhas mãos.

Hoje, ela está na minha prateleira, ocupando um lugar de destaque, como uma espécie de jóia da coroa da minha coleção de livros de RPG. Ela pode não está completa, infelizmente os posters, um dos mapas e três dos passaportes se perderam mas pensar que por pouco ela não acabou sendo jogada no lixo, compensa essas falhas.

Tive a chance de mestrar a campanha em 2004 e foi bem legal retornar ao trem dessa vez, não como passageiro, mas Condutor.

Orient express continua sendo um dos meus itens prediletos, pelas memórias que evoca e pela história que acabei de contar.

4 comentários:

  1. Adorei esse post! Cheio de emoção e nostalgia! Ainda irei jogar essa campanha :D

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  2. Matéria sensacional como sempre. Emocionante! Parabéns!

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  3. Ótimo post! Adorei o lance dos trajes na última sessão, acredito que um dia vou tentar algo do tipo.

    Uma dúvida, a linguagem do livro é meio difícil para compreensão? Meu inglês é mediano e eu realmente estou pensando em tentar adquirir essa nova edição.

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  4. Que história legal, Luciano! E é sempre legal ver gente que continua jogando RPG depois de tanto tempo... =)

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