quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Mares Misteriosos - O Monstro Abissal de Beebe


Nós vivemos em um planeta mergulhado em fria escuridão.

A maioria das pessoas sabe que três quartos da superfície da Terra são cobertos de água, mas a maioria nunca parou para pensar quanto dessa área se encontra nas profundezas, onde a luz do sol é virtualmente incapaz de penetrar. De fato, a maior parte de nosso planeta se encontra em uma zona de fria e perpétua escuridão; um mundo pouco explorado e absurdamente alienígena oculto por mares insondáveis.

A área banhada por luz solar dos oceanos da Terra, onde 90 por cento da vida marinha reside, se extende apenas por volta de 600 pés de profundidade. A partir desse ponto, a luminosidade vai se apagando e se converte em uma escuridão perene. Essa é a área das profundezas, conhecida como zona disfótica (disphotic zone). Além dela, existe algo ainda mais escuro e aterrador, a zona afótica (aphotic zone) na qual a luz jamais penetrou. Trata-se de um lugar imerso em trevas absurdamente densas e com uma pressão esmagadora. Lá, criaturas dignas de pesadelos deslizam delicadamente pelas marés como se voassem em um éter negro. Sabemos muito pouco a respeito desse mundo alienígena contido dentro de nosso próprio mundo. Essas profundezas são difíceis de serem estudadas e nós apenas arranhamos a superfície do que existe lá em baixo.

Tudo o que sabemos com certeza é que essas profudezas oceânicas não cansam de nos surpreender. Novas espécies de vida marinha, diferentes de qualquer coisa já vista, são frequentemente encontradas e biomas inteiros surgem em ambientes extremos, onde pensávamos que a vida, ao menos da forma como a compreendemos nunca poderia se fixar. Esses conceitos desafiam nossa noção do que é a vida e como ela evolui. Os bizarros organismos que chamam esse lugar insalubre de lar são tão incomuns que em algumas circunstâncias poderiam ser vistos como criaturas alienígenas.

Mas apesar de ser inóspito, frio e brutal, essas profundezas oceânicas estão cobertas vida, muito diferente do deserto desolado que imaginamos. Craig M. Young do Instituto de Biologia Marinha, certa vez descreveu o ecossistema dos abismos como "um lugar cuja biodiversidade supera a Floresta Amazônica e a Grande Barreira de Coral juntos". Não é portanto, uma surpresa que nesses abismos pouco explorados aflorem incríveis mistérios que nós ainda somos incapazes de compreender. Indo cada vez mais fundo, nas profundezas estígias dos mares, encontramos alguns enigmas que deixam cientistas e exploradores perplexos.

Aqui estão alguns deles:

O Peixe Abissal de Beebe

A Batisfera de William Beebe (à esquerda)
Alguns dos maiores mistérios ictiológicos do século foram desvendados na década de 1930 pelo explorador marinho William Beebe, que hoje é conhecido como o pai da Biologia Marinha. Beebe foi o chefe do Departamento de Pesquisas da Sociedade Zoológica de Nova York e um pioneiro na exploração das profundezas. Descendo em sua rudimentar batisfera - uma pequena esfera de metal com espaço para apenas um homem adulto em seu interior, Beebe foi um dos primeiros a explorar as profundezas das Bermudas. Em seu aparato de exploração, ele se converteu no primeiro homem a desafiar a pressão esmagadora e desbravar aquele mundo até então desconhecido. As descobertas de Beebe foram tão significativas que seu nome passou a figurar entre os maiores exploradores de sua época. As profundezas, conforme descritas por ele, eram um mundo hostil, habitado por criaturas gelatinosas  e translúcidas, peixes capazes de gerar luminosidade, monstros com dentes pontiagudos e inúmeros micro-organismos. Em seu livro Half Mile Down (Meia milha abaixo), Beebe escreveu:

"As profundezas marinhas são muito mais estranhas do que a imaginação poderia conceber. Não é possível focar em apenas um aspecto ou em uma única criatura quando todo um mundo se apresenta diante de nossos olhos: formas, cores, sensações, tudo vibrante e incomum... meus olhos buscavam um detalhe, mas logo eram atraídos para outro ainda mais incomum e raro desse reino maravilhoso".

Durante sua exploração nas profundezas das Bermudas, Beebe fez várias anotações e desenhos de suas descobertas, mas infelizmente, a tecnologia da época não permitia a tomada de fotografias submarinas ou a obtenção de espécimes. Muitas das criaturas que Beebe descreveu em seus diários e catalogou em seus estudos, coletivamente chamados de Peixes Abissais, foram posteriormente identificados por outros cientistas que usaram suas análises como base de reconhecimento. Beebe foi o primeiro a encontrar várias espécies e deu a elas seus nomes, contudo, há exceções.

Em 1932, Beebe desceu em sua batisfera levada a Costa das Bermudas para mais um mergulho de alta profundidade. Essas explorações já haviam se tornado rotineiras e o biólogo havia realizado diversas descidas em relativa segurança, nas quais fazia as observações e anotava em seu caderno tudo aquilo que via através da pequena escotilha da esfera metálica.

Aproximadamente a 2100 pés, a atenção de Beebe foi desviada para uma forma que passou a cerca de 5 metros da janela arredondada. A forma era sinuosa e deslizava velozmente ao redor da batisfera como se estivesse curioso com a sua presença. Nessa época, o equipamento de iluminação também era bastante rudimentar e a luz da lanterna penetrava apenas alguns metros na escuridão completa. Beebe percebeu entretanto que a forma esguia emitia uma luminosidade própria, um padrão avermelhado que ele podia distinguir mesmo à distância.

Beebe ordenou que o cabo da Batisfera parasse a descida e ficou observando, atento a qualquer movimento em seu campo de visão. Subitamente, um animal de grande porte surgiu diante da escotilha, passando a poucos metros da janela de vidro temperado, embaçada pela respiração acelerada do explorador. Era uma criatura sinuosa de cor vermelha acobreada, com mais de dois metros de comprimento, dorso e nadadeiras cinza-azuladas curtas e tentáculos ventrais responsáveis pela tênue luminosidade que havia captado.

Uma representação artística dos Peixes encontrads por Beebe na Costa de Bermudas
Ele ficou atônito, a criatura parecia um tipo de enguia ou moréia de tamanho considerável, habitando uma região na qual tais animais jamais haviam sido observados. Enquanto desfilava diante da escotilha, Beebe tentava reproduzir em um de seus cadernos a forma da criatura: seu aspecto longelíneo e seus dentes pontiagudos ganharam destaque no desenho feito com carvão. Nisso, a batisfera sofreu uma enorme agitação e Beebe se virou tentando entender o que estava acontecendo. No navio onde estava o guindaste responsável pela descida, os marinheiros captaram o solavanco e acharam que o cabo havia emperrado. Na verdade, só mais tarde, quando Beebe foi trazido de volta é que entenderam pelo que ele havia passado.

Um segundo animal, semelhante ao anterior, mas ainda maior havia abocanhado o cabo de conexão da batisfera e agitado vigorosamente o fio metálico. Beebe ficou atônito, dificilmente um animal conseguiria produzir danos ao resistente cabo, contudo, naquela profundidade qualquer agitação era um risco a integridade da batisfera e segurança do único ocupante.

"Foram 15 minutos de medo terrível", escreveu Beebe em suas memórias, "eu realmente queria ver mais detalhes do animal que estava espreitando a batisfera, mas o terror que eu sentia era tão grande que não conseguia me manter diante da escotilha". O animal parecia extremamente agressivo, diferente da maioria das criaturas nessa profundidade, que agem de forma bastante neutra. Foram quatro ataques contra o cabo, cada um fazendo a batisfera se agitar e rodar violentamente. Finalmente, frustrado com suas investidas, o animal maior avançou contra a esfera e se chocou com a escotilha provocando um baque seco. Beebe apagou então a lanterna e esperou em silêncio, imerso na escuridão.

"Foi o momento mais tenso da minha vida. Na escuridão eu conseguia discernir o contorno do animal e percebi que haviam outros à uma distância entre 5 e 10 metros. Alguns consideravelmente maiores. Se todos fossem atraídos e atacassem ao mesmo tempo, temo que o cabo pudesse realmente não suportar o peso e se romper".

Horrores das Profundezas
Felizmente, incapazes de danificar a batisfera, os animais acabaram se afastando e Beebe conseguiu enviar um sinal sonoro (já que não havia rádio) para que o guindaste içasse a esfera. Ao sair e respirar ar puro, Beebe contou o que havia acontecido e avaliou os danos sofridos pelos cabos. O filamento metálico não chegou a ser desgastado, mas haviam marcas evidentes deixadas pelos vorazes ataques. O explorador classificou os peixes como parte da família dos Melanostomidae, cujo maior exemplar até então, não atingia mais do que 15 polegadas de comprimento, Beebe estimou que o maior de seus agressores tivesse pelo menos quatro metros de comprimento e os batizou de Peixe Bathisfera.

A existência do Peixe Bathisfera é questionada por muitos exploradores das profundezas, já que nunca foi encontrada uma prova concreta de sua existência. Beebe foi o único a ter visto essa espécie até o momento. Alguns críticos acrediutam que Beebe possa ter alucinado com a existência do animal, um vazamento de gás ou mesmo a baixa oxigenação - algo comum a bordo de batisferas, pode induzir esse tipo de reação. Para os detratores do explorador, isso poderia explicar as alegadas visões de cidades submersas e animais marinhos gigantescos que ele alegou ter encontrado.

Um exemplar de Melanostomidae com 32 centímetros.
Até o fim de sua vida, Beebe buscou exaustivamente provar a existência dessa espécie e chegou a se especializar no estudo de Melanostomidas. Uma de suas maiores frustrações foi não ter conseguido comprovar aquilo que avistou e que lhe causou tanto pavor.

"Creio que experimentei aquilo que os primeiros marinheiros sentiam ao se lançar em mares desconhecidos sem saber o que existia abaixo da superfície. O pavor que senti, acossado no interior da batisfera provavelmente era o mesmo que os marujos sentiam ao se deparar com animais que eles acreditavam ser serpentes e monstros marinhos. Eu não tenho como precisar o que eram exatamente aqueles animais, mas sei  que vi e o que vi me causou um medo primitivo. Provar a existência do Peixe Bathisfera se tornou uma necessidade para mim... uma forma de provar a mim mesmo o que eu vi e de enfrentar meus temores".

Beebe desceu muitas outras vezes às profundezas, exatamente no mesmo ponto, mas jamais encontrou os tais animais. Mas isso, não significa que o Peixe Bathisfera não exista: diversas espécies vistas por exporadores e pelo próprio Beebe só tiveram sua existência comprovada muito tempo depois graças a outros exploradores. O Peixe Arco-Iris das profundezas por exemplo, visto por Beebe em 1935 só teve sua existência comprovada em 1996 por uma equipe norueguesa.

Mais recentemente, a existência da colossal Lula Gigante foi provada por uma equipe de oceanógrafos japoneses que conseguiu filmar um desses fascinantes animais em seu ambiente. Até então, o caráter mítico desses animais - que originaram a lenda dos krakens, nos velhos mitos nórdicos, perdurava há séculos. Ainda que houvesse indícios de sua existência que surgiam ocasionalmente lançadas em praias.

O Peixe Batisfera de Beebe pode simplesmente estar em algum lugar lá embaixo, esperando o momento de surgir novamente.

*     *     *


Não sei quanto a vocês, mas a descrição de William Beebe para o que ele viu e o pavor que ele sentiu diante da presença de uma criatura marinha desconhecida são puro "Horror diante do Desconhecido". A mesma descrição, cheia de incertezas e temores diante de algo imponderável poderia ser usada para descrever o avistamento de um horror cthulhiano nas profundezas.

Eu me pergunto se Lovecraft, como contemporâneo de William Beebe não teria lido a respeito de suas explorações submarinas. Uma vez que o autor era um leitor assíduo de revistas científicas e um devorador de temas envolvendo expedições aos recantos mais extremos do planeta, me parece correto supor que ele estivesse bem informado sobre os trabalhos do biólogo norte-americano.

Também me pergunto se Beebe não serviu como inspiração para um conto cuto escrito por Lovecraft em 1920 e publicado pela primeira vez na Revista Weird Tales em 1925, entitulado "The Temple". 

Nessa estória, supostamente relatada em um manuscrito encontrado numa garrafa na Costa de Yucatán, Karl Heinrich um passageiro num submarino alemão narra os trágicos acontecimentos a bordo da embarcação.

Após afundar uma fragata britânica no Atântico Norte, a tripulação do U-boat 99, percebe uma ameaça fantasmagórica na forma de medo e paranóia à bordo. Após um acidente, o submarino avariado fica incapaz de manobrar, podendo apenas emergir e submergir. Indo até as profundezas, membros da tripulação vêem os cadáveres de marinheiros nadar ao redor da embarcação como se os estivessem chamando para descer rumo às profundezas. 


O Capitão, um arrogante aristocrata chamado Von Altenberg-Ehrenstein insiste que a paranóia dominou seus homens e nega a existência de qualquer elemento sobrenatural. Punindo os homens severamente, ele os leva à beira do motim. Eventualmente, o submarino descobre as ruínas de uma cidade com estranha arquitetura e estátuas perturbadoras nas profundezas. Verificando pela janela da escotilha, os membros restantes da tripulação se deparam com algo impossível espreitando nos recessos escuros de um templo submerso, algo que acaba destruindo o submarino e condenando a todos.

Assim como Dagon, "O Templo" é uma estóra com background marítimo, se passando durante a Grande Guerra. O tema de cidades perdidas afundadas no mar e construídas por civilizações antigas não humanas é recorrente na obra de Lovecraft, vide "O Chamado de Cthulhu" e "A Sombra sobre Innsmouth". 

À título de curiosidade, existem pelo menos três cenários do RPG Chamado de Cthulhu que bebe dessa mesma fonte, oferecendo aventuras nas quais investigadores dos Mythos acabam encontrando horrores advindos das profundezas.

No livro "Grace Under Pressure" um grupo de exploradores das profundezas acaba preso em uma estação submarina no início dos anos 1990, tendo que enfrentar criaturas submarinas, horrores impronunciáveis e é claro, a esmagadora pressão que ameaça as instalações. Extremamente tensa e bem trabalhada, essa aventura tem um status quase mítico entre os conhecedores do jogo.

Em "The City in the Sea", publicada no livro "Cthulhu Now", os investigadores tem a chance de desvendar o que realmente aconteceu ao U-Boat 99 no distante ano de 1917. Uma expedição às profundezas acaba encontrando indícios de uma cidade submersa que a princípio julgam ser um posto avançado da mítica Atlântida. As pistas, no entanto, acabam levando para outro caminho a medida que horrores das profundezas vem à tona para assombrar o grupo.

Temos ainda "Devil´s Deep" publicada no livro "In the Shadows" a respeito da triste sina de um amigo dos investigadores que passa por uma horrenda transformação. Boa parte desse cenário se passando na Escócia envolve a exploração de uma Fossa Submarina e das estranhas coisas que lá habitam.

Finalmente, mais em sintonia com o artigo sobre William Beebe, temos o cenário "Lost on a Sea of Dreams", presente no livro Mythos Expedition de Rastro de Cthulhu - publicado pela Pelgrane Press. Aqui a aventura inclui até a participação do próprio Beebe e uma expedição às Bermudas em busca de uma das cidades perdidas avistada pelo biólogo em uma de suas descidas. Muito bem escrita pelo brilhante Adam Gauntlett, essa é uma daquelas estórias que vale a pena ser jogada pela riqueza de detalhes e pela maneira como mundo real e fictício se sobrepõem.

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Bem, este é apenas o primeiro artigo em uma série chamada Mares Misteriosos que se refere a mistérios das profundezas marinhas e coisas inexplicáveis, com um ponto de vista dos Mythos, sempre que possível.

Espero que gostem dessa série.

2 comentários:

  1. Muito legal a história do biólogo. Realmente nota-se que até hoje há cientistas que são arrogantes demais para admitir que nossa ciência mal arranha a superfície da realidade. Enquanto estamos começando a nos aventurar pelo espaço em busca de mais vida, muitos se esquecem que nem estamos perto de entender toda a vida que existe na Terra...

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