quarta-feira, 8 de março de 2017

A Grande Viajante - A vida e as jornadas de Alexandra David-Neel


Todo ano, nessa data específica em que se celebra o Dia Internacional das Mulheres, o Mundo Tentacular prepara uma postagem especial com alguma mulher que marcou época. 

Na ficção lovecraftiana o que não falta são mulheres a frente de seu tempo. O mais interessante a respeito delas, contudo,  é que muitas vezes elas foram inspiradas por mulheres verdadeiras de carne e osso que tiveram existências inacreditáveis. Uma dessas mulheres incríveis é Alexandra David-Neel, nascida na França, mas com o coração no Oriente, ela é um exemplo de aventureira cuja vida incrível parece coisa de ficção. 

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Mistica, contestadora, ocultista e viajante, Louise Eugenie Alexandrine Marie David nasceu em Paris em 24 de outubro de 1868. A atmosfera de sua casa durante sua infância era, segundo a maioria das pessoas, bastante austera e rígida. Quando criança, os livros favoritos da pequena Louise eram as histórias de ficção científica escritas por Jules Verne. Como uma maneira de se rebelar contra sua severa criação, ela prometeu a si mesma que um dia teria uma vida tão vibrante quanto a daqueles personagens. 

Uma das primeiras indicações de seu desejo de liberdade e anseio por aventuras foi ela ter fugido de casa aos cinco anos, logo após a família ter se mudado para Bruxelas. Só depois de ser procurada por uma noite inteira, a menina foi encontrada e conduzida a contra gosta até uma gendarmeria. Aos quinze anos de idade, Alexandra, que havia exigido o direito de estudar, tomou conhecimento do mundo oculto e ficou fascinada pelo tema. Logo ela passou a se corresponder com Elisabeth Morgan, que era membro da Sociedade da Suprema Gnosis, uma ordem de estudos do sobrenatural.

Naquele verão, a família passaria os feriados de fim de ano em Ostend, mas Alexandra queria algo mais interessante e conseguiu escapar para a Holanda onde atravessou o canal para a Inglaterra afim de encontrar a Srta. Morgan e receber instrução sobre o oculto. Morgan ficou chocada ao descobrir que ela era uma adolescente e a mandou embora. Em 1885, quando tinha 17, Alexandra fugiu mais uma vez de casa. Dessa vez, decidiu viajar de Bruxelas até a Suíça de trem. Dali seguiu a pé pela Passagem de Saint-Gotthard Pass até atingir os Lagos alpinos na Itália.

Parecia claro que nada deteria Alexandra de viajar pelo mundo. Em 1888 seus pais enfim cederam e aceitaram permitir que ela estudasse em um Conservatório em Londres. Alexandra no entretanto tinha outras ideias. Finalmente ela foi aceita na Sociedade da Suprema Gnosis provando seu conhecimento teórico de ocultismo diante de uma comissão presidida pela mesma Srta. Morgan. Entre as pessoas presentes à sabatina estava a ninguém menos que a conceituada Madame Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, cujas ideias esotéricas tiveram enorme influência sobre Alexandra e sobre os ocultistas do período. 


Aos vinte anos, ela retornou a Paris e foi aceita na Universidade Sorbone, tornando-se uma ativista política. Dizem que mantinha uma pistola e munição em seu apartamento e que se envolveu com radicais anarquistas em planos de sabotagem. Mas logo se separou deles por não concordar com alguns conceitos. Em 1891, quando tinha completado 23 anos, disfarçou-se de homem e invadiu um culto estabelecido em Paris por Sri Ananda Sarawati que usava haxixe para obter visões.

Nesse mesmo ano uma herança por parte de sua avó permitiu que ela viajasse para o Ceilão e India. Fascinada pelo mistério, magia e pelas melodias da música tibetana, ela partiu em uma peregrinação religiosa até Adyar, uma cidade próxima de Madras, onde conheceu outra ocultista, a britânica Annie Besant com quem passou a estudar sânscrito. Na Cidade sagrada de Benares, ela teve o primeiro contato com meditação transcendental e ioga com o Swami Bhaskarananda. Segundo sua biografia lá aprendeu várias técnicas que lhe permitiam entre outras coisas realizar viagens astrais, contatar entidades superiores e até flutuar. Infelizmente ela se viu obrigada a retornar a Europa quando seu dinheiro terminou.

Em 1899, Alexandra escreveu um tratado sobre política e feminismo que os editores franceses ficaram receosos de publicar. Suas ideias eram tão avançadas para os padrões comportamentais que seus detratores afirmaram que ela sofria de doenças mentais. Entre 1894 e 1900, Alexandra viveu como aspirante a atriz e cantora. Eventualmente, aceitou um trabalho na recém inaugurada Casa de Opera em Tunis, no Norte da África. Nesse trabalho conheceu Phillip Neel, um engenheiro ferroviário tão inquieto quanto ela própria, por quem se apaixonou. Os dois casaram em 1904 e passaram a viver em La Goulette, um vilarejo próximo do Mar Mediterrâneo.  

Em 1911, Alexandra empreendeu sua segunda viagem a India, desembarcando em Pondicherry, uma colônia francesa estabelecida no sub-continente, lugar de grande agitação política com agentes separatistas agindo em todos níveis. Por volta de 1912, ela chegou a Calcutá, onde se juntou a uma Escola de Fakirs, mais uma vez disfarçada como homem. Fotos da época mostram Alexandra deitada em camas de pregos, subindo por cordas mágicas e flutuando em pleno ar. Ela também tomou parte em Rituais Tântricos e se tornou a das mais jovens iniciada a tomar parte no Ritual das Cinco Sustâncias Proibidas. Dizia ser capaz de viver apenas de pequenas quantidades de água de rosas, de curar doenças através de ativação dos chacras e de processar venenos em seu corpo. Ela progrediu rápido em seus estudos de sânscrito e foi agraciada com um Doutorado honorário em Filosofia pela Escola de Benares, a primeira mulher européia a receber tal honra.


Quando decidiu se estabelecer no pequeno Vilarejo de Sikkin, no Himalaia imediatamente se sentiu em casa, sendo aceita pela população local. Ela também conheceu o Príncipe Sidkeong de quem, dizem, tornou-se amante. Alexandra foi a primeira mulher ocidental a ser formalmente apresentada ao Dalai Lama, que pediu que ela fosse aceita no Monastério Budista de Lachen, um dos mais importantes da tradição tibetana. Durante os anos que se seguiram, Alexandra foi introduzida nos segredos do budismo tibetano, aprendendo os segredos do "tumo" a arte de gerar calor corporal e usar a voz para produzir ondas sonoras capazes de curar e matar. 

Um visitante britânico de passagem pelo lugar descreveu Alexandra como uma visão impressionante. Uma mulher alta e imponente, com os trajes cerimoniais de um monge, usando um rosário de fragmentos de osso ao redor do pescoço, um avental bordado com símbolos místicos e uma adaga ritualística na cintura, uma lâmina que ela afirmava ser mágica, capaz de cortar através de pedra, metal e espíritos.  

Dois anos mais tarde ela conheceu um jovem chamado Aphur Yogden, e estabeleceu com ele uma amizade que duraria por toda suas vidas, e que resultaria na adoção de Yongden como seu filho. Os dois se mudaram para uma caverna localizada a 4000 metros na cadeia montanhosa de Sikkin onde passaram por uma provação que os obrigou a viver como eremitas. Seu objetivo no entanto era viajar até a Cidade Sagrada de Llasa. Infelizmente o Tibet raramente abria as suas fronteiras para europeus, quanto mais mulheres européias. A despeito disso, Alexandra e Yongden tentaram duas vezes, o que resultou em sua expulsão de Sikkin em 1916.


A Grande Guerra tornou impossível que ela retornasse a Europa, então ela decidiu viajar para o Japão. Em uma carta escrita ao marido - que ela não via há mais de uma década, ela confessou seus sentimentos a respeito do oriente:

"Eu tenho saudades de uma terra que não é minha. Eu sou assombrada pelas lembranças das estepes, da solidão das montanhas, da neve que jamais derrete e dos céus de um azul escuro impenetrável. Até mesmo as dificuldades: a fome, a sede, o vento que golpeia a face e atravessa os casacos, tudo isso me faz falta. Eu preciso retornar o quanto antes ao Tibete, pois lá é minha casa".  

Com o fim da Guerra, Alexandra conseguiu voltar a India e em Kum Bum estudou as técnicas de criação de um Tulpa, uma entidade criada pelo poder psíquico, produzida através de intensa concentração e rituais místicos repetidos ao longo de meses. Testemunhas afirmam que Alexandra criou a figura etérea de um monge, que se tornou seu companheiro de viagens e guardião. Para alguns sensitivos, o tulpa podia ser visto e ouvido como uma pessoa normal. Alexandra dizia que a criatura que ela construiu através do ritual era um amigo fiel que a defendia de maneira implacável. Certa vez, no entanto, o fantasma foi responsável por matar um bandido de estrada, o que fez Alexandra se culpar pelo ocorrido. Ela usou de toda sua concentração para "dissolver" o tulpa, mas ele continuou a acompanhando, mesmo quando ela tentou exorcizá-lo. Até o fim de sua vida, o tulpa a assombrou como uma presença constante em sua vida.

Em fevereiro de 1921, Alexandra e Yongden se disfarçaram de mendigos e tentaram entrar novamente em Lhasa. A viagem foi uma expedição épica de três anos, com os detalhes relatados em seu livro "Jornada a Lhasa" editado em inglês em 1927. A rota escolhida era uma peregrinação de 3900 milhas por um terreno montanhoso extremamente difícil, evitado até mesmo pelos viajantes mais experientes pelo temor de avalanches e desmoronamentos.


Em uma etapa da viagem, em meados de 1923, os dois seguiram para o Norte e chegaram ao Deserto inóspito do Gobi. De lá, retornaram através da China e seguiram para o oeste, cruzando a fronteira do Tibet com uma caravana de camelos. o longo do percurso cruzaram o caminho de bandoleiros, revolucionários, enormes tigres siberianos e clima selvagem. Ela relatou até mesmo o avistamento de um dos legendários homens das neves.

Em outro fenômeno estranho, a caravana se deparou com um "Lung-Gom", uma espécie de espírito (lama) que se movia em velocidade inacreditável. Alexandra foi alertada para não olhar na direção da silhueta tremeluzente que os seguia sob o risco dele arrancar sua alma. Ela contrariou os conselhos dos guias e conseguiu ver a forma verdadeira do lama que corria no vazio. Alexandra usou sua adaga mágica para espantar o espírito que se lançou num despenhadeiro quando ela entoou cânticos em uma língua ancestral.

Em fevereiro de 1924, Alexandra e Yongden enfim chegaram no território de Lhasa sob disfarce e puderam explorar o lugar por três meses. Enquanto na cidade, ela ganhou acesso a templos e bibliotecas e pode estudar pergaminhos e livros raros. Alexandra visitava um riacho toda manhã, onde gostava de se banhar, certo dia ela foi vista por peregrinos que a denunciaram ao governador. Uma vez que a dupla estava em Lhasa clandestinamente, isso poderia ser um sério problema, mas por sorte, o um dos conselheiros do Governador era súdito do Principe de Sikki que a avisou a tempo dela e Yongden escaparem.

Cumprida sua grande meta, Alexandra decidiu que era hora de retornar a Europa, ela chegou a Paris em 1925, e foi recebida como uma grande heroína. De comum acordo, ela e o marido decidiram pelo divórcio amigável e ela se estabeleceu em Digne, na Provence onde começou a escrever um livro de memórias. Também estabeleceu lá um "Samten-Dzong", um templo chamado "Fortaleza da Meditação". Ela publicou vários livros a respeito de meditação, ioga, sobre suas viagens, misticismo e religiões orientais. Foi convidada a presidir palestras em várias instituições acadêmicas da Europa com enorme sucesso.


Em 1937, com 70 anos, Alexandra fez uma nova viagem a China,a companhada de Yongden, usando a Ferrovia Transiberiana. Infelizmente eles chegaram no início da violenta Guerra contra o Japão, quando fome e doença eram triviais. Ela escreveu cartas e artigos para a imprensa internacional, chamando a atenção da opinião pública para a brutal campanha de expansão militar do Império do Japão. Ela chegou a ser acusada de espionagem e teve que se refugiar em um monastério ao ser procurada pelos japoneses. Eventualmente, ela conseguiu escapar da China e chegou a India onde permaneceu até o final da Guerra.

Ela voltou a França e se estabeleceu novamente na propriedade em Digne.

Em 1955 Yongden, quase 30 anos mais jovem que Alexandra morreu enquanto estava em Samten-Dzong. Alexandra trabalhou para ter seu passaporte renovado e por credenciais para retornar a India para levar as cinzas do filho adotivo. Mas beirando os 100 anos, ela não teve seu desejo atendido.

Alexandra recebeu a medalha de ouro da Sociedade Geográfica de Paris, uma grande honra e em 1969 foi agraciada com com o título de Dama da Legião de Honra. O governo do Tibet a concedeu o posto de Lama. 

Ela morreu em 8 de setembro de 1969, com 101 anos de idade.


Em 1973, suas cinzas foram levadas para o oriente e espalhadas junto com as de Yongden nas águas do Rio Ganges, diante da Cidade Sagrada de Benares. Em 1982, o Dalai Lama prestou tributo a Alexandra David-Neel visitando a casa de Digne e consagrando o local como um Lugar de Peregrinação. Hoje, lá existe um Museu devotado a sua vida e aos ensinamentos do Budismo. Os visitantes podem ver objetos pertencentes a Alexandra David-Neel e uma série de fotografias de suas viagens.

A Grande Viajante escreveu mais de 30 livros, publicados em 15 idiomas a respeito de Religião oriental, filosofia e suas viagens mais exóticas que tiveram enorme influência em numerosos autores que se inspiraram em suas narrativas. Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997) citaram as peregrinações de Alexandra como base para seus próprios trabalhos.

3 comentários:

  1. Impressionante como a vida pode passar de uma existência mundana e pueril, para uma grande aventura transcendendo as barreiras do mundo, da percepção. Obrigado por mais esse relato incrível.

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  2. Fantástico texto. Desconhecia essa moça e suas fascinantes, duvidosas e invejosas empreitadas pelo vasto oriente. Muito inspirador!

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